sábado, 2 de fevereiro de 2008

Boêmio. Cronica por Edna Costa. 01/05/2006.

Ele chegou na casa de meus tios, filhotinho ainda. Foi trazido por minha prima dizendo que ele a seguira pelas ruas parando toda vez que ela parava e fitando-a com os grandes olhos tristonhos. O andar trôpego, a magreza e aqueles olhos que pareciam contar sua historia de abandono, tocaram o coração da menina que não teve coragem de entrar e fechar mais uma vez o portão para aquela criaturinha. Meus tios concordaram em adotá-lo e assim ele ganhou uma família.

Depois de um banho e uma boa refeição chegou a hora de escolherem um nome para o cãozinho. Foi uma confusão daquelas e os nomes escolhidos pareciam não combinar nunca com o bicho. Finalmente puseram o nome de “Pretinho”, porque ele era inteiro negro. Aquela primeira noite foi terrível para todos pois o pequeno pôs-se a chorar olhando para a porta da rua e não havia nada que o consolasse.

No dia seguinte ficou decidido que ele dormiria no quintal. Saíram para comprar uma casinha para Pretinho e quando anoiteceu colocaram uma vasilha grande com água perto da sua nova moradia, despediram-se e todos foram dormir. Por volta de onze horas da noite meu tio foi ver como estava Pretinho e, surpresa…ele tinha sumido! Foi outra noite mal dormida pois meus primos e primas estavam inconsoláveis pelo sumiço dele.

No dia seguinte de manhã outra surpresa…lá estava Pretinho dormindo como um anjo. Todos ficaram aliviados com sua volta. A partir daí eventualmente o bicho sumia a noite e ninguém sabia onde ia mas acostumaram-se com esse mistério. O vira-latas ganhou peso, ficou mais bonito e com os pelos brilhantes mas os olhos continuavam tristes.

Depois de algum tempo tiveram que trocar seu nome pois ele não gostava deste e estava disposto a demonstrar sua insatisfação não respondendo quando o chamavam. Vieram outros nomes como Lulu, Totó, Rex mas nada do bicho obedecer. Até que em uma de nossas visitas meu tio contou do sumiço semanal do cachorro e meu pai disse brincando que ele devia ir para a farra. Bingo! Deram o nome de Boêmio para ele que prontamente ergueu a cabeça e balançou o rabo em sinal de contentamento. Assim a vida foi seguindo e Boêmio, já adulto, continuava com seus sumiços esporádicos.

Chegou o dia do casamento da minha prima e a casa estava em polvorosa desde bem cedo. A família sempre foi muito conhecida e estimada na pequena cidade e viria muita gente aliás, acho que a cidade inteira. Seria aquela festa! Primeiro serviriam o almoço e depois viria o “arrasta-pé”. Neste dia, Boêmio desapareceu desde manhã mas todos estavam ocupados demais para se preocupar com isso

Começaram a chegar os comes e bebes, as ajudantes e alguns convidados adiantados (para desespero de minha tia). Ela pediu para suas ajudantes colocarem os doces num quartinho dos fundos e fecharem a porta com a chave. Os noivos foram para o cartório, casaram-se, depois o vigário celebrou o casamento religioso lá na residência mesmo. No almoço todo mundo comeu até fartar-se sem esquecer de deixar espaço para o bolo e os doces.

Tão logo todos terminaram de almoçar, as ajudantes foram buscar os doces para servirem e ao abrir a porta quase desmaiaram! Tinha doce espalhado por todo lado e lá estava Boêmio passando mal depois de ter comido até não poder mais. Ele estivera o tempo todo preso (ou escondido?) no quartinho e pelo jeito assim que fecharam definitivamente a porta, ele caiu de boca nas guloseimas. Foi um Deus nos acuda! Minha tia quase teve um treco! Só se salvou o lindo bolo que havia sido colocado numa mesa bem alta. Sem mais nada a fazer, minha tia recompôs-se, voltou à festa e com elegância anunciou que os doces não tinham passado pelo teste de qualidade do “provador” e só seria servido bolo e champanha.

Naquela noite depois que a festa acabou e os noivos partiram para a lua-de-mel a casa ficou às escuras mas podia-se ouvir Boêmio gemendo baixinho no quintal. Fiquei imaginando o pobrezinho com os olhos tristonhos olhando para dentro da noite sem poder sair com uma tremenda dor de barriga e, creio eu, jurando não comer mais doce pelo resto da vida.

No dia seguinte a vida voltou ao normal na cidade mas demorou muito para que a história fosse esquecida. Até hoje ainda tem alguém que lembra do “causo” e diz que deveriam ter trocado o nome do Boêmio para Guloso.

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